4.1.14

Para Alice Wang



Querida Alice.

Condolências e pesares não farão muito sentido agora e com certeza não te servirão de nada quando puder ler essa carta. Por esse motivo resolvi te deixar algo para se lembrar de seu pai quando for um pouco mais velha, ou talvez adulta. Algo de que me lembro que me marcou por toda a minha história e que considero desta forma: Algo que ele deixou para mim. Como você, também não o tive por perto tempo o bastante; talvez eu saiba dele tanto quanto você saberá quando tiver a minha idade. Mesmo assim quero que se lembre de quem ele foi, e que como eu, você possa levar um pouco dele para a sua história também.

Eu o conheci em 1943. Dennis era o navegador da nossa tripulação, e infelizmente esse rapaz de farda verde nas fotos é o único Dennis que eu conheci. Voávamos missões sobre a França e Alemanha e o nosso bombardeiro era o “Ás de Ouros”. Danny era um homem bom, engraçado. Vivia com o rosto cortado pela navalha, com a jaqueta por cima das camisas que não sabia passar, o quepe sobre os cabelos desgrenhados. Conseguia até mesmo se queimar fumando. Era um perfeito desajustado para os padrões. Confuso, inseguro, ansioso. Bebia muito, muito mesmo, numa época em que não se chamava os outros de “alcoólatra”. Havia muitas maneiras de suportar as coisas e beber era só uma delas. Mas era um homem bom, acima de tudo. Não só bêbado, até sóbrio, algo sutil fazia com que todos gostassem dele de uma forma que eu nunca pude explicar. 

Eu me lembro de uma noite em que tivemos que apartá-lo de uma briga em um bar. Não foi a primeira e nem a última vez, mas foi uma noite difícil que quase nos custou aquela licença de três dias e várias outras por vir. Tivemos que fugir para uma cidade próxima e deixar os ânimos se acalmarem para voltar a Kimbolton. Foi nessa noite que ele me disse uma coisa que nunca esqueci. Ficamos ele e eu na porta da enfermaria, esperando por alguém que nos pudesse arrumar algo para dor de cabeça, quando ele disse:

“Sabe, Eddie, eu não sei como vim parar na Aeronáutica. Foi tudo um grande erro. Quando me dei conta estava escalado para essa tripulação e... bom, já havíamos passado todo aquele tempo em Ft.Rogers. Eu sei que não me mandariam pra trás por nada na vida e, todos vocês, casados, com esposa e filhos esperando lá fora... Quem sou eu para fugir? É só assim que eu consigo suportar a decolagem, a altitude. Vocês mereciam um navegador melhor, Eddie. Me desculpe por tantos transtornos!”       
                           
Dennis não suportava a altura, era muito propenso a surtos de pânico... e até hoje acho que só eu percebi. Hoje eu estive aqui vendo meu velho amigo Danny pela última vez e fiquei com essa pedra na garganta. Novamente. Imaginando tudo que ele fez para disfarçar as crises. Como fomos tão insensíveis para não perceber. Como o Corpo da Aeronáutica permitiu isso. Ele foi a nossa bússola a mais de dezoito mil pés, naquele horizonte cinza entre as nuvens da velha Europa. Nos guiou por tempestades, explosões de artilharia, fogo inimigo e nos trouxe a salvo sempre, afogando a sua fobia com tudo que pudesse. Whisky, vodka, provocações e piadas idiotas. Ele fez tudo o que pôde, e pediu desculpas, e disso eu nunca me esqueci. Levei pelo menos vinte anos para entender o que Danny realmente sentiu e passou.

Nesse meio tempo fiz tudo errado – e completamente sóbrio. Construí, destruí, culpei o mundo pelos que morreram e pelo meu tempo perdido. Me vi perdendo todos enquanto todos estavam aqui. Danny ainda estava aqui e eu nunca fui visitá-lo. Danny, West, Andrews, todos os meus grandes amigos; homens que eu pensei que nunca gostaria de ver novamente. Todos eles estavam aqui; Fortalezas silenciosas, cada um à sua maneira fazendo o que podiam com o que lhes restou e mesmo depois da guerra protegendo o mundo de tudo que havíamos passado. O pedido de desculpas de Danny ainda ecoava na minha cabeça. Ele pode ter se perdido no próprio caminho da vida, mas nunca culpou a guerra, o azar, ou as oportunidades que perdeu – Ele só fez o melhor, não importasse quão ridículo ou vergonhoso pudesse parecer. Ele estava honestamente disposto a nos proteger e talvez porque naquele momento singular da sua vida nada mais importasse, nisso ele nunca falhou. Seus feitos, seus trejeitos, sua assinatura. Nós fizemos nossas missões, voltamos para casa. Ele é o navegador que os companheiros da época lembram. E enquanto eu caminhei por aquela capela revi praticamente todos aqueles que conhecemos juntos, e muitos que Danny também protegeu depois da guerra, à sua maneira. Gente que cruzou dois ou três estados para se despedir. Familiares, amigos de trabalho. Muita gente que nunca vai entender o que nós sentimos hoje, mas sabe o que é perder alguém que se ama – e sabe que isso é muito parecido. 

Não ouça ninguém que diga o contrário, Alice. Uma crítica ou palavra má nunca vale a pena. Erros, vergonhas, fracassos. Ninguém se apega a eles de verdade. As pessoas esquecem muito rápido na verdade. É como uma sujeira no para-brisa do carro. Incomoda, seja o carro nosso ou de outra pessoa, só queremos empurrar para o lado. A vida pode seguir sem essas coisas, e quase sempre segue muito bem. O que merece ser lembrado está nas coisas boas, nos olhos de alguns poucos que sabem. Gente que normalmente não é ouvida. Você conhecerá alguns desses poucos e discretos, silenciados. A sociedade, as regras, as leis... Eles tentam te diminuir de todas as formas possíveis, o tempo todo, só por controle. Seja ousada. Viva a sua verdade, com determinação. Não sei como será quando você for adulta Alice, mas saiba que seu pai foi um homem excepcional, de uma forma – no mínimo – excepcional. Tenho certeza que ele te amou como ninguém vai te amar, e se há com ele um único arrependimento digno de ter, é o de não poder estar do seu lado agora.

Não carregue tristeza, revolta ou dúvida. Permita-se no máximo saudades e uma foto dele sorrindo. E claro, siga a vocação da família: permita-se ser, a despeito dos obstáculos ridículos e das ilusões da vida, excepcional.


                         Edgard F. McWells.
                         McComb, 09 de Agosto, 1966.

3.12.13

A dois grandes mestres;


            Foi numa feira de colégio que eu os vi, em 1998. Não sei explicar o que realmente eu vi que fizesse tanto sentido na minha cabeça, mas acho que pela primeira vez em quatorze anos de tão pouca existência eu tive um verdadeiro desejo. Um desejo puro:                                                                                                         
          -Eu quero aqueles coturnos! 
                   
Nunca houvera calçado um. Nem ideia fazia de quanta dor eles me trariam até que me acostumasse. Eu os queria simplesmente porque os vi, gostei e estranhamente fez sentido. Não por ser metaleiro, punk, gótico, nem querer dizer coisa alguma com aquilo. Não naquele momento, em consciência. Era um garoto comum, que voltava do colégio na hora do almoço e jogava bola na rua até o anoitecer. Não conhecia música nenhuma, no máximo curtia os clipes do Michael Jackson no Fantástico. Mal sabia que aqueles dias estavam acabando. Fomos, meu pai e eu, rodar uma cidade inteira atrás de um artigo exclusivo do exército. Não era tempo, neste interior de Brasil, em que se achava fácil um calçado desta categoria em lojas de artigos de camping ou se comprava qualquer coisa pela internet. Pra complicar, ainda calçava um número alto, difícil para encontrar qualquer tipo de pisante. Rodamos, rodamos, mas no fim deu certo.

            Era um clássico Atalaia preto com cano de lona. Como ainda fazem hoje, só que sem zíper lateral (uma extravagância dos militares de hoje, que se eximem até de lidar com a amarração aranha), mas com a qualidade e acabamento que só os velhos tempos garantem.

Tornei-me um tipo de aberração.

- Punk? Skinhead? Seu pai é militar? – Como se eu devesse explicações.
“- Sim, eu sou toda a merda ambulante!”- Durden, T.

            Comprei um par de coturnos e um jogo de holofotes que me seguiam onde eu estivesse. Cidade provinciana, pouca tolerância a elementos estranhos. Havia resistência de aceitação, um desconforto social e físico que me dificultava existir. Não me importava; superei a todos. Acostumei-me com aquela amarração sobre a canela. Acostumei-me com as críticas, os comentários, defini meus contornos e tracei os limites. As feridas engrossaram o couro do pé - De ferido, passei a ferir. Chutava amigos, colegas, conhecidos, estranhos em rodas de poga. 
Ganhei uma identidade e uma "arma branca".

            Foi ótimo assumir essa identidade. Muito importante para o meu crescimento como pessoa. Me afastou de muitos ao mesmo tempo que me aproximou de outros – E acredito que tenha sido assim por bem. Filtrou da forma mais assertiva quem realmente deveria estar do meu lado. Gente que talvez não soubesse explicar por quê, ou o que realmente fizesse sentido, mas que tivesse um desejo verdadeiro de estar ali. Um desejo puro. Esses amigos estão por perto até hoje, e embora troquemos chutes com menos frequência, até para não acertar as crianças e assustar os cônjuges, o amor é o mesmo.

Os coturnos também. Não aquele Atalaia preto. Ele cumpriu o seu tempo de serviço; com honras. Infelizmente os solados emborrachados não permitem reforma. Artimanhas da indústria. Depois dele, convicto de que não calçaria nada diferente para o resto da vida, dei-me o trabalho de projetar um e encomendá-lo a um sapateiro. O seu preço foi proporcional ao tempo de serviço. Esse sim, uma arma branca. Queixo-duro com biqueira de ferro, 100% couro do bico ao cano, encadarçado e com duas fivelas. Uma verdadeira patrola de pé. Esteve comigo durante todos os melhores e piores momentos da minha juventude. Trabalho, cachaçadas, shows, formaturas, casamentos – Sim, casamentos, por quê não? Com a barra das calças sobre o cano. Quase ninguém percebe, essa é a verdade! Onde não fosse vetado o seu uso por decreto, lá estavam eles. Comendo asfalto, canelas. Cuidei deles bastante, mas abusei das suas potencialidades muito mais. Esses realmente poderiam estar aqui até hoje...

Fatos da vida.

Fui obrigado a comprar sapatos sociais uma vez. Uma única vez. Lembro-me disso com um certo mal estar. É inexplicável. Imagino que seja a mesma sensação de comprar um caixão para o próprio funeral. Ninguém faz isso, e se fizesse faria sem a menor ideia do que vai ser, sabendo que não se verá nele, nunca. Usei só o suficiente. Morreram numa inundação de mofo, propositalmente esquecidos num armário umedecido pela parede do banheiro. Também ganhei um par de tênis de uma namorada. Eu gostava demais deles –  muito bonitos, além de todo o valor afetivo. Só é incrível vestir um tênis todo acolchoado, projetado com toda glória e ergonomia, e perceber que ele te machuca mais que o velho patrola-de-pé.

Depois deles, só os de paraquedista. Charme do couro marrom. Um Atalaia PQD, direto do fornecedor em Três-Corações, e um americano, Sz12.

Sempre os coturnos. Nunca deixaram a desejar. Nem pouco, nem demais. Uma mão de graxa, uma lustrada de leve e eu me vejo como a quinze anos atrás, amarrando-os por cima das calças e ganhando as ruas como eu realmente me sentia bem. Só porque eu me sentia bem; sem sentido, sem nenhum porquê.
  
E só hoje entendo a lição que eles tentaram me ensinar esse tempo todo.

Tudo que precisamos para que tudo dê certo é isso:

Um desejo puro.
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28.11.13

January 16, 2017



            A viga esquerda da ponte Jeanne Martyn até os dias de hoje é famosa por todos que cruzam o Clinton River, mas quase ninguém sabe o verdadeiro motivo de vê-la figurada com destaque nos mapas turísticos de Sterling Heights ou no Google Maps. Não é qualquer um que o cruza senão pela ponte, o que lentamente transformou o fato num tipo de “saber local”; um saber suburbano de poucos e cada vez menos. Até antes da reestruturação da ponte na década de oitenta, ao rio era permitido o tráfego por banhistas em geral e esportistas do remo olímpico, além de toda gente. Me recordo vagamente, apenas por que muitas eram as críticas. Havia um incentivo ridículo da prefeitura aos esportes com o fim de atrair recursos federais e outras coisas no âmbito político da época. Eu mesmo nunca cruzei o rio, nem mesmo de carro. Nem mesmo quando era seguro. Hoje em dia só mendigos e vândalos passam por lá - Mas tanto os banhistas quanto os mendigos sabem da viga esquerda da Jeanne Martyn. Se perguntados, cada um no seu tempo, contariam a mesma história. Dia a dia, com os curiosos detalhes de quem realmente esteve lá, mesmo não estando, e com a mesma reserva e temor que fez os engenheiros e construtores da época evitarem a remoção da viga.

             Me encanta esse tipo de misticismo urbano, mais do que qualquer curiosidade leviana da história ocidental. Ele resiste ao tempo com uma fidelidade peculiar. Não há interesses governamentais nem poderes de origem alguma que se esforcem em ocultá-la ou forjá-la – Talvez até houvesse. Valorizar os terrenos ao redor do Clinton River? Acredito que em algum momento houve tal inclinação. Seja como for, não resistiu aos tratos da história. Foi implodida com a imigração ilegal, com certeza, e a necessidade de acomodar inúmeros problemas sociais. Superpopulação, violência, queda do poder aquisitivo, das ações estatais, da moeda. A recessão americana e o polo industrial estrangeiro que se ergueu e amalgamou tudo ao redor. The Great Sterling Heights, como passou a figurar nos veículos da mídia. No sentido de encarneirar e aquartelar essa massa de mão de obra barata e ilegal, deixar Jeanne Martyn intocada foi estratégico. Sem ganho ou perda para ninguém, a bem dizer. Nenhum porquê. Somente um fato local e imparcial que tornasse possível auxiliares mecânicos e chapeiros eslovenos alugarem um apartamento qualquer nos arredores da Honneu Boulevard e nas baixadas do Golerin. Só por acaso - um fato tão cruel, tão macabro, que meramente citar o evento joga o valor do metro quadrado ao terço, além de gerar um desconforto no mais débil dos caipiras, no mais cético dos burocratas. É esse tipo de coisa que sobrevive às crises e conserva a verdade como a tequila conserva o seu verme.

                O mundo seria mais interessante com mais vigas e pontes como Jeanne Martyn, e defendo essa ideia como a própria vida. A aposentadoria, a experiência e principalmente a relação com a política levaram ao extremo o meu apego à verdade. Acredito que o homem precise enfrentar e temer essa força da natureza mais do que qualquer regime ou divindade, e Sterling Heights é o lugar certo para esse tipo de afrontamento. Mesmo em meio a mais densa corrupção, paira sobre a grande metrópole uma verdade acerba, sem som, que se alimenta de tudo e se permite envolver pelas mais diversas forças da nossa própria mente sem corromper-se... para só então, de súbito desnudar-nos de qualquer ego, de qualquer ilusão, de qualquer resistência. Ela está em toda parte, seja nos condomínios mais caros do New Halmich Parks, seja nos prostíbulos da Latvi-russkaia, e eu a anseio mais que qualquer coisa. O preço pela ambição, a esta altura, pouco importa. Que mais motivaria um sexagenário? Que emoção ou desejo eu não comprei, roubei ou negociei ao longo da vida? A verdade. A verdade é a mais honesta e legítima das motivações, e infelizmente, um luxo para homens na minha posição. Em nome dela tive que ir muito além de meus domínios. Transitei pelas borras cinzas dessa vida como ela mesma, a vida, na sua magnífica e perturbadora engenhosidade. Visitei os umbrais da decadência humana, busquei fontes no limbo, investiguei psicopatas, atormentados mentais. Vaguei pelas coincidências, injustiças e vez e outra abracei um milagre. Muitos me chamaram de lunático, paranoico, doente. Eu estava velho demais para dar-me tanta importância... Tenho idade para saber o que sou. 

Juiz aposentado; colecionador profissional de fatos.

24.11.13

Disclaimer



É recorrente me lembrarem de algum texto ou poema que escrevi. É recorrente me perguntarem se ainda canto, se ainda pinto, desenho. Se ainda faço o que no passado fazia e claro, o que me traz à memória. “Você sumiu!” – dizem, sempre. E “sempre” fica sendo essa palavra estranha de se ouvir, porque “sempre” vai me remeter sempre a uma eternidade cíclica infernal de coisas que haviam sido e de alguma forma ainda estão sendo, sem fim, sem desfecho. O sempre me persegue. E é assim por que “sempre” que me descuido o passado me enquadra violentamente num cruzamento de vias aleatório.
Reencontros improváveis, impossíveis, e o clássico bordão:
“- Você sumiu!”
...
Talvez eu tenha sobrevivido tempo bastante para ceder aos arrependimentos. Tive que aprender a perdoar-me por desistência, e nesse ínterim me achei vivo. De novo. Apesar de todas as referências fúnebres e os velórios velados me encontraram vivo.
Vivi dezenas de vidas e morri na maioria delas. E ainda estou vivo.
Devo a vida e todo o resto aos amigos que estiveram sempre aqui. Lá. Aonde quer que eu estivesse perdido. Um eterno obrigado a vocês, seus veados.

E citando um desses grandes amigos:

“...Com o avançar irremediável da idade, percebeu que além de tudo, iria se esquecer do pouco que já leu, viu, escutou ou pensou. E decidiu escrever.”
Te citei mesmo, vadia-mor. Quem mandou ser genial.

É isso aí.

Que seja só um depósito de banalidades, entulhos, e outras coisas que respiram no abandono. Oficina filial do Inferno. Reflexos do esquecido Jardim da Chancelaria, dos cultos à loucura, das crônicas do Post-Mortem e uma leve pincelada de Coturno Ideológico.

Que pelo menos resista aos invernos da minha inconsistência.

Porque o “Sempre” sempre vai me perseguir, mas eu vou sumir do mesmo jeito.
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 Bitches!