3.12.13

A dois grandes mestres;


            Foi numa feira de colégio que eu os vi, em 1998. Não sei explicar o que realmente eu vi que fizesse tanto sentido na minha cabeça, mas acho que pela primeira vez em quatorze anos de tão pouca existência eu tive um verdadeiro desejo. Um desejo puro:                                                                                                         
          -Eu quero aqueles coturnos! 
                   
Nunca houvera calçado um. Nem ideia fazia de quanta dor eles me trariam até que me acostumasse. Eu os queria simplesmente porque os vi, gostei e estranhamente fez sentido. Não por ser metaleiro, punk, gótico, nem querer dizer coisa alguma com aquilo. Não naquele momento, em consciência. Era um garoto comum, que voltava do colégio na hora do almoço e jogava bola na rua até o anoitecer. Não conhecia música nenhuma, no máximo curtia os clipes do Michael Jackson no Fantástico. Mal sabia que aqueles dias estavam acabando. Fomos, meu pai e eu, rodar uma cidade inteira atrás de um artigo exclusivo do exército. Não era tempo, neste interior de Brasil, em que se achava fácil um calçado desta categoria em lojas de artigos de camping ou se comprava qualquer coisa pela internet. Pra complicar, ainda calçava um número alto, difícil para encontrar qualquer tipo de pisante. Rodamos, rodamos, mas no fim deu certo.

            Era um clássico Atalaia preto com cano de lona. Como ainda fazem hoje, só que sem zíper lateral (uma extravagância dos militares de hoje, que se eximem até de lidar com a amarração aranha), mas com a qualidade e acabamento que só os velhos tempos garantem.

Tornei-me um tipo de aberração.

- Punk? Skinhead? Seu pai é militar? – Como se eu devesse explicações.
“- Sim, eu sou toda a merda ambulante!”- Durden, T.

            Comprei um par de coturnos e um jogo de holofotes que me seguiam onde eu estivesse. Cidade provinciana, pouca tolerância a elementos estranhos. Havia resistência de aceitação, um desconforto social e físico que me dificultava existir. Não me importava; superei a todos. Acostumei-me com aquela amarração sobre a canela. Acostumei-me com as críticas, os comentários, defini meus contornos e tracei os limites. As feridas engrossaram o couro do pé - De ferido, passei a ferir. Chutava amigos, colegas, conhecidos, estranhos em rodas de poga. 
Ganhei uma identidade e uma "arma branca".

            Foi ótimo assumir essa identidade. Muito importante para o meu crescimento como pessoa. Me afastou de muitos ao mesmo tempo que me aproximou de outros – E acredito que tenha sido assim por bem. Filtrou da forma mais assertiva quem realmente deveria estar do meu lado. Gente que talvez não soubesse explicar por quê, ou o que realmente fizesse sentido, mas que tivesse um desejo verdadeiro de estar ali. Um desejo puro. Esses amigos estão por perto até hoje, e embora troquemos chutes com menos frequência, até para não acertar as crianças e assustar os cônjuges, o amor é o mesmo.

Os coturnos também. Não aquele Atalaia preto. Ele cumpriu o seu tempo de serviço; com honras. Infelizmente os solados emborrachados não permitem reforma. Artimanhas da indústria. Depois dele, convicto de que não calçaria nada diferente para o resto da vida, dei-me o trabalho de projetar um e encomendá-lo a um sapateiro. O seu preço foi proporcional ao tempo de serviço. Esse sim, uma arma branca. Queixo-duro com biqueira de ferro, 100% couro do bico ao cano, encadarçado e com duas fivelas. Uma verdadeira patrola de pé. Esteve comigo durante todos os melhores e piores momentos da minha juventude. Trabalho, cachaçadas, shows, formaturas, casamentos – Sim, casamentos, por quê não? Com a barra das calças sobre o cano. Quase ninguém percebe, essa é a verdade! Onde não fosse vetado o seu uso por decreto, lá estavam eles. Comendo asfalto, canelas. Cuidei deles bastante, mas abusei das suas potencialidades muito mais. Esses realmente poderiam estar aqui até hoje...

Fatos da vida.

Fui obrigado a comprar sapatos sociais uma vez. Uma única vez. Lembro-me disso com um certo mal estar. É inexplicável. Imagino que seja a mesma sensação de comprar um caixão para o próprio funeral. Ninguém faz isso, e se fizesse faria sem a menor ideia do que vai ser, sabendo que não se verá nele, nunca. Usei só o suficiente. Morreram numa inundação de mofo, propositalmente esquecidos num armário umedecido pela parede do banheiro. Também ganhei um par de tênis de uma namorada. Eu gostava demais deles –  muito bonitos, além de todo o valor afetivo. Só é incrível vestir um tênis todo acolchoado, projetado com toda glória e ergonomia, e perceber que ele te machuca mais que o velho patrola-de-pé.

Depois deles, só os de paraquedista. Charme do couro marrom. Um Atalaia PQD, direto do fornecedor em Três-Corações, e um americano, Sz12.

Sempre os coturnos. Nunca deixaram a desejar. Nem pouco, nem demais. Uma mão de graxa, uma lustrada de leve e eu me vejo como a quinze anos atrás, amarrando-os por cima das calças e ganhando as ruas como eu realmente me sentia bem. Só porque eu me sentia bem; sem sentido, sem nenhum porquê.
  
E só hoje entendo a lição que eles tentaram me ensinar esse tempo todo.

Tudo que precisamos para que tudo dê certo é isso:

Um desejo puro.
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