A viga esquerda da ponte Jeanne
Martyn até os dias de hoje é famosa por todos que cruzam o Clinton River, mas
quase ninguém sabe o verdadeiro motivo de vê-la figurada com destaque nos
mapas turísticos de Sterling Heights ou no Google Maps. Não é qualquer um que o
cruza senão pela ponte, o que lentamente transformou o fato num tipo de “saber
local”; um saber suburbano de poucos e cada vez menos. Até antes da
reestruturação da ponte na década de oitenta, ao rio era permitido o tráfego
por banhistas em geral e esportistas do remo olímpico, além de toda gente. Me recordo
vagamente, apenas por que muitas eram as críticas. Havia um incentivo ridículo
da prefeitura aos esportes com o fim de atrair recursos federais e outras
coisas no âmbito político da época. Eu mesmo nunca cruzei o rio, nem mesmo de
carro. Nem mesmo quando era seguro. Hoje em dia só mendigos e vândalos
passam por lá - Mas tanto os banhistas quanto os mendigos sabem da viga
esquerda da Jeanne Martyn. Se perguntados, cada um no seu tempo, contariam a mesma
história. Dia a dia, com os curiosos detalhes de quem realmente esteve lá,
mesmo não estando, e com a mesma reserva e temor que fez os engenheiros e
construtores da época evitarem a remoção da viga.
Me
encanta esse tipo de misticismo urbano, mais do que qualquer curiosidade
leviana da história ocidental. Ele resiste ao tempo com uma fidelidade
peculiar. Não há interesses governamentais nem poderes de origem alguma que se
esforcem em ocultá-la ou forjá-la – Talvez até houvesse. Valorizar os terrenos
ao redor do Clinton River? Acredito que em algum momento houve tal inclinação. Seja
como for, não resistiu aos tratos da história. Foi implodida com a imigração
ilegal, com certeza, e a necessidade de acomodar inúmeros problemas sociais. Superpopulação,
violência, queda do poder aquisitivo, das ações estatais, da moeda. A recessão
americana e o polo industrial estrangeiro que se ergueu e amalgamou tudo ao
redor. The Great Sterling Heights,
como passou a figurar nos veículos da mídia. No sentido de encarneirar e
aquartelar essa massa de mão de obra barata e ilegal, deixar Jeanne Martyn
intocada foi estratégico. Sem ganho ou perda para ninguém, a bem dizer. Nenhum
porquê. Somente um fato local e imparcial que tornasse possível auxiliares mecânicos
e chapeiros eslovenos alugarem um apartamento qualquer nos arredores da Honneu
Boulevard e nas baixadas do Golerin. Só por acaso - um fato tão cruel, tão macabro,
que meramente citar o evento joga o valor do metro quadrado ao terço, além de gerar
um desconforto no mais débil dos caipiras, no mais cético dos burocratas. É
esse tipo de coisa que sobrevive às crises e conserva a verdade como a tequila
conserva o seu verme.
O
mundo seria mais interessante com mais vigas e pontes como Jeanne Martyn, e defendo
essa ideia como a própria vida. A aposentadoria, a experiência e principalmente
a relação com a política levaram ao extremo o meu apego à verdade. Acredito que
o homem precise enfrentar e temer essa força da natureza mais do que qualquer
regime ou divindade, e Sterling Heights é o lugar certo para esse tipo de
afrontamento. Mesmo em meio a mais densa corrupção, paira sobre a grande
metrópole uma verdade acerba, sem som, que se alimenta de tudo e se permite
envolver pelas mais diversas forças da nossa própria mente sem corromper-se... para
só então, de súbito desnudar-nos de qualquer ego, de qualquer ilusão, de
qualquer resistência. Ela está em toda parte, seja nos condomínios mais caros do
New Halmich Parks, seja nos prostíbulos da Latvi-russkaia, e eu a anseio mais
que qualquer coisa. O preço pela ambição, a esta altura, pouco importa. Que
mais motivaria um sexagenário? Que emoção ou desejo eu não comprei, roubei ou
negociei ao longo da vida? A verdade. A verdade é a mais honesta e legítima das
motivações, e infelizmente, um luxo para homens na minha posição. Em nome dela tive que
ir muito além de meus domínios. Transitei pelas borras cinzas dessa vida como
ela mesma, a vida, na sua magnífica e perturbadora engenhosidade. Visitei os umbrais da
decadência humana, busquei fontes no limbo, investiguei psicopatas,
atormentados mentais. Vaguei pelas coincidências, injustiças e vez e outra
abracei um milagre. Muitos me chamaram de lunático, paranoico, doente. Eu
estava velho demais para dar-me tanta importância... Tenho idade para saber o
que sou.