Querida Alice.
Condolências e pesares não farão muito sentido agora e com
certeza não te servirão de nada quando puder ler essa carta. Por esse motivo resolvi
te deixar algo para se lembrar de seu pai quando for um pouco mais velha, ou talvez
adulta. Algo de que me lembro que me marcou por toda a minha história e que considero
desta forma: Algo que ele deixou para mim. Como você, também não o tive por
perto tempo o bastante; talvez eu saiba dele tanto quanto você saberá quando
tiver a minha idade. Mesmo assim quero que se lembre de quem ele foi, e que
como eu, você possa levar um pouco dele para a sua história também.
Eu o conheci em 1943. Dennis era o navegador da nossa
tripulação, e infelizmente esse rapaz de farda verde nas fotos é o único Dennis
que eu conheci. Voávamos missões sobre a França e Alemanha e o nosso
bombardeiro era o “Ás de Ouros”. Danny era um homem bom, engraçado. Vivia com o rosto cortado pela navalha, com a jaqueta por cima das camisas que não sabia passar, o quepe sobre os cabelos desgrenhados. Conseguia até mesmo se queimar fumando. Era um perfeito desajustado para os padrões. Confuso,
inseguro, ansioso. Bebia muito, muito mesmo, numa época em que não se chamava os outros de “alcoólatra”. Havia muitas maneiras de suportar as coisas e beber
era só uma delas. Mas era um homem bom, acima de tudo. Não só bêbado, até sóbrio, algo sutil fazia com que todos gostassem dele de uma forma que eu nunca pude
explicar.
Eu me lembro de uma noite em que tivemos que apartá-lo de
uma briga em um bar. Não foi a primeira e nem a última vez, mas foi uma noite
difícil que quase nos custou aquela licença de três dias e várias outras por vir.
Tivemos que fugir para uma cidade próxima e deixar os ânimos se acalmarem para
voltar a Kimbolton. Foi nessa noite que ele me disse uma coisa que nunca esqueci.
Ficamos ele e eu na porta da enfermaria, esperando por alguém que nos pudesse
arrumar algo para dor de cabeça, quando ele disse:
“Sabe, Eddie, eu não sei como vim parar na Aeronáutica. Foi
tudo um grande erro. Quando me dei conta estava escalado para essa tripulação
e... bom, já havíamos passado todo aquele tempo em Ft.Rogers. Eu sei que não me
mandariam pra trás por nada na vida e, todos vocês, casados, com esposa e filhos
esperando lá fora... Quem sou eu para fugir? É só assim que eu consigo suportar
a decolagem, a altitude. Vocês mereciam um navegador melhor, Eddie. Me desculpe
por tantos transtornos!”
Dennis não suportava a altura, era muito propenso a surtos
de pânico... e até hoje acho que só eu percebi. Hoje eu estive aqui vendo meu velho amigo Danny pela última vez e
fiquei com essa pedra na garganta. Novamente. Imaginando tudo que ele fez para disfarçar as crises. Como fomos tão insensíveis para não perceber. Como o Corpo da Aeronáutica permitiu isso. Ele foi a nossa bússola a mais de dezoito mil pés, naquele horizonte
cinza entre as nuvens da velha Europa. Nos guiou por tempestades, explosões de
artilharia, fogo inimigo e nos trouxe a salvo sempre, afogando a sua fobia com tudo
que pudesse. Whisky, vodka, provocações e piadas idiotas. Ele fez tudo o que pôde, e pediu desculpas,
e disso eu nunca me esqueci. Levei pelo menos vinte anos para entender o que Danny
realmente sentiu e passou.
Nesse meio tempo fiz tudo errado – e completamente sóbrio.
Construí, destruí, culpei o mundo pelos que morreram e pelo meu tempo perdido. Me
vi perdendo todos enquanto todos estavam aqui. Danny ainda estava aqui e eu
nunca fui visitá-lo. Danny, West, Andrews, todos os meus grandes amigos; homens
que eu pensei que nunca gostaria de ver novamente. Todos eles estavam aqui; Fortalezas
silenciosas, cada um à sua maneira fazendo o que podiam com o que lhes restou
e mesmo depois da guerra protegendo o mundo de tudo que havíamos passado. O pedido de desculpas de Danny ainda ecoava na minha cabeça. Ele pode ter se perdido no próprio caminho da vida, mas nunca
culpou a guerra, o azar, ou as oportunidades que perdeu – Ele só fez
o melhor, não importasse quão ridículo ou vergonhoso pudesse parecer.
Ele estava honestamente disposto a nos proteger e talvez porque naquele momento singular da sua vida nada mais importasse, nisso ele nunca falhou. Seus feitos, seus trejeitos, sua assinatura. Nós
fizemos nossas missões, voltamos para casa. Ele é o navegador que os
companheiros da época lembram. E enquanto eu caminhei por aquela capela revi praticamente
todos aqueles que conhecemos juntos, e muitos que Danny também protegeu depois da guerra, à sua maneira. Gente que cruzou dois ou três estados para se
despedir. Familiares, amigos de trabalho. Muita gente que nunca vai entender o
que nós sentimos hoje, mas sabe o que é perder alguém que se ama – e sabe que
isso é muito parecido.
Não ouça ninguém que diga o contrário, Alice. Uma crítica ou
palavra má nunca vale a pena. Erros, vergonhas, fracassos. Ninguém se apega a eles de verdade. As pessoas esquecem muito rápido na verdade. É como uma sujeira no para-brisa do carro. Incomoda, seja o carro nosso ou de outra pessoa, só queremos empurrar para o lado. A vida pode seguir sem essas coisas, e quase
sempre segue muito bem. O que merece ser lembrado está nas coisas boas, nos olhos de alguns
poucos que sabem. Gente que normalmente não é ouvida. Você conhecerá alguns desses
poucos e discretos, silenciados. A sociedade, as regras, as
leis... Eles tentam te diminuir de todas as formas possíveis, o tempo todo, só por controle.
Seja ousada. Viva a sua verdade, com determinação. Não sei como será quando você for adulta
Alice, mas saiba que seu pai foi um homem excepcional, de uma forma – no mínimo
– excepcional. Tenho certeza que ele te amou como ninguém vai te amar, e se
há com ele um único arrependimento digno de ter, é o de não poder estar do seu lado
agora.
Não carregue tristeza, revolta ou dúvida. Permita-se no máximo saudades e uma foto dele sorrindo. E claro, siga a vocação da família: permita-se ser, a despeito dos obstáculos ridículos e das ilusões da vida, excepcional.
Edgard F. McWells.
McComb, 09 de Agosto, 1966.