Foi numa
feira de colégio que eu os vi, em 1998. Não sei explicar o que realmente eu vi
que fizesse tanto sentido na minha cabeça, mas acho que pela primeira vez em
quatorze anos de tão pouca existência eu tive um verdadeiro desejo. Um desejo
puro:
-Eu
quero aqueles coturnos!
Nunca
houvera calçado um. Nem ideia fazia de quanta dor eles me trariam até que me
acostumasse. Eu os queria simplesmente porque os vi, gostei e estranhamente fez
sentido. Não por ser metaleiro, punk, gótico, nem querer dizer coisa alguma com
aquilo. Não naquele momento, em consciência. Era um garoto comum, que voltava
do colégio na hora do almoço e jogava bola na rua até o anoitecer. Não conhecia
música nenhuma, no máximo curtia os clipes do Michael Jackson no Fantástico. Mal
sabia que aqueles dias estavam acabando. Fomos, meu pai e eu, rodar uma cidade
inteira atrás de um artigo exclusivo do exército. Não era tempo, neste interior
de Brasil, em que se achava fácil um calçado desta categoria em lojas de
artigos de camping ou se comprava qualquer coisa pela internet. Pra complicar,
ainda calçava um número alto, difícil para encontrar qualquer tipo de pisante.
Rodamos, rodamos, mas no fim deu certo.
Era um
clássico Atalaia preto com cano de lona. Como ainda fazem hoje, só que sem
zíper lateral (uma extravagância dos militares de hoje, que se eximem até de
lidar com a amarração aranha), mas com a qualidade e acabamento que só os
velhos tempos garantem.
Tornei-me
um tipo de aberração.
- Punk?
Skinhead? Seu pai é militar? – Como se eu devesse explicações.
“- Sim,
eu sou toda a merda ambulante!”- Durden, T.
Comprei
um par de coturnos e um jogo de holofotes que me seguiam onde eu estivesse.
Cidade provinciana, pouca tolerância a elementos estranhos. Havia resistência
de aceitação, um desconforto social e físico que me dificultava existir. Não
me importava; superei a todos. Acostumei-me com aquela amarração sobre a
canela. Acostumei-me com as críticas, os comentários, defini meus contornos e
tracei os limites. As feridas engrossaram o couro do pé - De ferido, passei a
ferir. Chutava amigos, colegas, conhecidos, estranhos em rodas de poga.
Ganhei
uma identidade e uma "arma branca".
Foi ótimo
assumir essa identidade. Muito importante para o meu crescimento como pessoa. Me
afastou de muitos ao mesmo tempo que me aproximou de outros – E acredito que tenha
sido assim por bem. Filtrou da forma mais assertiva quem realmente deveria
estar do meu lado. Gente que talvez não soubesse explicar por quê, ou o que
realmente fizesse sentido, mas que tivesse um desejo verdadeiro de estar ali.
Um desejo puro. Esses amigos estão por perto até hoje, e embora troquemos
chutes com menos frequência, até para não acertar as crianças e assustar os
cônjuges, o amor é o mesmo.
Os
coturnos também. Não aquele Atalaia preto. Ele cumpriu o seu tempo de serviço;
com honras. Infelizmente os solados emborrachados não permitem reforma.
Artimanhas da indústria. Depois dele, convicto de que não calçaria nada
diferente para o resto da vida, dei-me o trabalho de projetar um e encomendá-lo
a um sapateiro. O seu preço foi proporcional ao tempo de serviço. Esse sim, uma arma branca. Queixo-duro com biqueira de ferro, 100% couro do bico ao cano, encadarçado
e com duas fivelas. Uma verdadeira patrola de pé. Esteve comigo durante todos
os melhores e piores momentos da minha juventude. Trabalho, cachaçadas, shows,
formaturas, casamentos – Sim, casamentos, por quê não? Com a barra das calças
sobre o cano. Quase ninguém percebe, essa é a verdade! Onde não fosse vetado o
seu uso por decreto, lá estavam eles. Comendo asfalto, canelas. Cuidei deles
bastante, mas abusei das suas potencialidades muito mais. Esses realmente poderiam
estar aqui até hoje...
Fatos da
vida.
Fui
obrigado a comprar sapatos sociais uma vez. Uma única vez. Lembro-me disso com
um certo mal estar. É inexplicável. Imagino que seja a mesma sensação de
comprar um caixão para o próprio funeral. Ninguém faz isso, e se fizesse faria sem
a menor ideia do que vai ser, sabendo que não se verá nele, nunca. Usei só o
suficiente. Morreram numa inundação de mofo, propositalmente esquecidos num
armário umedecido pela parede do banheiro. Também ganhei um par de tênis de uma
namorada. Eu gostava demais deles – muito
bonitos, além de todo o valor afetivo. Só é incrível vestir um tênis todo
acolchoado, projetado com toda glória e ergonomia, e perceber que ele te
machuca mais que o velho patrola-de-pé.
Depois
deles, só os de paraquedista. Charme do couro marrom. Um Atalaia PQD, direto do
fornecedor em Três-Corações, e um americano, Sz12.
Sempre os
coturnos. Nunca deixaram a desejar. Nem pouco, nem demais. Uma mão de graxa,
uma lustrada de leve e eu me vejo como a quinze anos atrás, amarrando-os por
cima das calças e ganhando as ruas como eu realmente me sentia bem. Só porque eu me sentia bem; sem sentido, sem nenhum porquê.
E só hoje entendo a lição que eles tentaram me ensinar
esse tempo todo.
Tudo que
precisamos para que tudo dê certo é isso:
Um desejo
puro.
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